Hans Monderman, o engenheiro de tráfego holandês conhecido pelos seus inovadores planos de “espaço partilhado” enfatizando a interacção e negociação humanas em vez da obediência cega aos aparelhos de controlo de tráfego mecânicos, morreu ontem. Para saberem mais, leiam o post (e sigam os links) no Streets Blog.
Esta abordagem atrai-me, pois muitas vezes ao conduzir de carro dentro da cidade sinto que há demasiada sinalização vertical, semafórica e no chão a exigir a minha atenção e sinto que em vez de me concentrar nos outros carros, ciclistas e peões tenho a atenção dispersa pelos inúmeros sinais que tenho que visualizar, registar e compreender para não incorrer em nenhuma infracção ou acidente. E depois há a dispersão espacial e falta de uniformidade na posição e tipo de suporte das indicações como ruas, institutos, etc.
Gostava de um dia visitar os locais em que o Hans implementou este sistema.
Ontem de manhã estive na rádio a debater com um juiz que, com a melhor das intenções, dizia que a melhor solução para dar segurança aos peões era afasta-los dos cruzamentos dez metros usando guarda-corpos (eufemismo de barreiras). Nos três minutos de resposta ainda pensei em falar do Hans. Mas a inversão do paradigma é enorme e senti que não iria ser compreendido. Disse que deviamos todos nos esforçarmos por uma cidade mais aberta e sem barreiras.
No entanto já no corredor, há saída, lá expliquei que “guarda-corpos” eram uma solução muito usada nos anos 70, mas que a tendência actual é abrir e minimizar …existe mesmo um homem no norte da Holanda…
Cheguei a casa e tinha a triste noticia na caixa de correio de um amigo comum. Fiquei muito, muito triste.
Conheci o Hans Monderman há muitos anos. Estive com ele há dois meses em Toronto e parecia-me bem. Falamos da velocidade, da “tragedy of the commons”, e das vantagens ou desvantagens de “go dutch” numa conta de restaurante. Dizia-lhe eu que tal como uma conta de restaurante pode aumentar em espiral quando é a dividir por todos – porque um acabará por pedir um whisky de doze anos e outro um charuto cubano e por aí fora. Também numa praça pública poderá haver a tendência de cada um aumentar a velocidade em beneficio próprio porque o custo é a dividir por todos. Era uma conversa que tínhamos com frequência – acabávamos sempre comigo a perguntar – Mas será mesmo possível chamar negociação quando uns têm 70 kg e outros 1,500 kg? E ele respondeu-me com paciência – no fim, a pergunta fundamental é se acreditamos nos outros ou não. Já sabia que ele estava muito doente e senti que eu é que podia estar a ser demasiado cínico com a natureza humana.
Quando o Robert Stussi me mostrou uma entrevista espontânea que tinha feito em Groningen, disse-lhe que me lembrava a essência do Hans Monderman – lá no Norte, ventoso da Holanda durante décadas podia trabalhar de forma criativa à vontade sem cínicos para lhe dizer que não iria funcionar.
Fiz a montagem do filme que está aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=VQASVz4xun8
Sobre o Monderman escrevi aqui:
http://www.artecapital.net/arq_des.php?ref=13
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Nos últimos anos, primeiro nas províncias do norte da Holanda e depois no resto da Europa, começaram a experimentar-se sistemas curiosos de desenho urbano, de coexistência entre os carros, peões e bicicletas. No fundo não são mais que um retorno às origens: quanto menos ordenamento e sectorização funcional do tráfego, mais seguro e humano é o espaço público. Optando por uma estratégia de partilha do espaço público, os primeiros projectos da autoria de Hans Monderman rejeitaram a separação entre modos e toda a panóplia de sinalética e regulamentação viária que ainda hoje é normal em projectos com a presença de automóveis e peões. Através do uso de materiais que desconstroem a tradicional separação entre a via, passeios e ciclovias cria-se uma flexibilidade e fluidez em que todos os participantes interagem de olhos nos olhos. A ausência de conflitos é conseguida através de uma negociação baseada no princípio de que a prioridade é sempre do mais vulnerável.
Ao retirar toda e qualquer marcação no pavimento e sinalização de trânsito, Monderman conseguiu que os motoristas começassem a sentir-se como actores sociais da praça ou cruzamento, e a comportar-se como peões. Retirando-se passadeiras e dando-do prioridade aos peões, o espaço torna-se num ballet de interacção com o corpo e o olhar, onde todos os modos convivem e as funções de estadia, deslocação e jogo se misturam. Desenhando o espaço com prioridade para as pessoas e não para os carros, podemos desburocratizá-lo e reduzir a velocidade para níveis onde é novamente possível a deriva e a socialização [6]. Podemos celebrar finalmente a importância da atenção e da descoberta de Guy Debord — ou como disse um dos projectistas, quanto mais perigoso for um espaço, mais seguro ele é. È o desenho para a incerteza e o intrigante que nos predispõe a retomar a conversa com quem cruzamos. A troca de olhares de que falava Breton.
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Sim, o conceito é mesmo uma volta de 180º no paradigma actual, a maior parte das pessoas acharia isso uma catástrofe em potência. 😉
Para mim foi “apenas” uma perda em termos da sociedade como um todo, para o Mário há uma perda pessoal, é duplamente triste… Espero que ele tenha tido muitos discípulos, que dêem continuidade ao seu trabalho… 🙂
Sou holandesa, por isso fui educada a ser peão e ciclista muito antes de aprender a guiar. Mesmo assim tive a oportunidade de vivenciar ambientes de trânsito radicalmente diferentes: desde a subordinação dos carros (sendo as ruas tomadas pelas crianças que aí brincam) em pacatas vilas, passando pela negociação constante entre carro, peão e ciclista (Amesterdão) até à anarquia absoluta de uma megapolis como Bangkok (onde ganha quem estiver em maior número, muitas vezes os peões que montam mercados no meio da rua, às vezes os tuk-tuks que lá são como as bicicletas e poucas vezes o carro pois o trânsito não anda). E não esquecendo as cidades que separam os carros dos outros transeúntes com gigantescas vias e “flyovers” como Jakarta, Tunis, Singapura. Mas foi em Portugal que experienciei a verdadeira hegemonia do carro, e onde pela primeira vez fui assolada pelo sentimento de “roadrage”. Aqui o carro é um verdadeiro túnel, completamente isolado da vida da cidade. Da maneira que o trânsito está desenhado, Lisboa nomeademente mais parece uma rede de autoestradas.
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