Há uns putos aqui do bairro social ao lado que gostam de atirar pedras às casas dos outros quando por aqui passam. É um hobby. Às vezes é fruta (que arrancam e roubam das árvores do nosso quintal), outras é pedras. A varanda do meu quarto é alvo frequente. Não sei como ainda não acertaram em alguém, ou não partiram um vidro ou danificaram um carro. Pura sorte nossa, presumo. Até ver…
Hoje a minha mãe presenciou a cena. Era já no “lusco-fusco”, noite, e ela não lhes conseguiu ver as caras. Mas perguntou-lhes porque faziam aquilo, se alguém dali lhes tinha feito algum mal. Eles responderam o habitual, “vai pró caralho”. A minha mãe é conciliadora. Desde sempre, desde que o bairro práqui veio, que ela tenta falar com os míudos que nos entravam no quintal e se empoleiravam nas árvores, partindo-as, para arrancar a fruta (geralmente ainda verde), tentar estabelecer uma relação, tratá-los como pessoas, perceber porque fazem o que fazem e explicar por que não devem fazer algumas dessas coisas e do modo como fazem. Diz-lhes que prefere que lhes peçam a fruta do que a roubem. Talvez tenha resultado algumas vezes, ou com certos putos, mas não faz milagres.
Há algo de revoltante em ter pedras atiradas à nossa casa. Uma pessoa sente-se humilhada, agredida, vulnerável, desprezada. A vinda destas pessoas para aqui não foi pacífica. Houve muitos roubos no início (inclusivé a nossa casa), muitos grupos de miúdos a circular por aqui e a fazer merda. Os putos na minha época também roubavam fruta, entravam em alguns quintais, tocavam às campainhas. Mas não apedrejavam casas, não insultavam os vizinhos descaradamente, na cara deles. Ter polícias à paisana à porta de casa, a controlar o bairro era normal, como o era ter que chamar a polícia por causa de carros roubados ali abandonados (era o “transporte público” à noite, para chegarem a casa). Até operações especiais com armas e polícia à paisana já pude ver da minha janela. Pessoal a conduzir em excesso de velocidade e em défice de segurança também é frequente, e perseguições policiais já levaram a acidentes graves aqui. Os bandidos são reis, impunes, fazem o que querem. Adultos e crianças.
Este bairro social tem melhor aspecto (os prédios, os canteiros ajardinados, os bancos de jardim, a iluminação, a escola ali ao pé, etc, do que as localidades onde foram implantados, pelo que a argumento dos “coitadinhos”, estão ali no guetto, sem infrastruturas nenhumas e não sei quê” não pega. É algo além.
Quando vi este bairro incluído na lista dos piores aqui em Lisboa, num artigo do Sol do passado fim-de-semana, fiquei um bocado com (mais) medo de andar por aqui de bicicleta pra cima e pra baixo, muitas vezes às tantas da manhã… 🙁
Viver com medo é terrível. Uma pessoa não deveria ter medo de andar na rua com as suas coisas e ser roubada ou atacada por isso. Não devíamos ter medo dos marginais e dos criminosos, eles é que deviam ter medo de nós. Está tudo ao contrário.
Entretanto, pequenos grandes projectos dão-nos alguma esperança na capacidade da nossa sociedade de se curar e equilibrar…
Olá,
Lendo o relato, pareceu-me que você está no Brasil.
Algumas pequenas diferenças: aqui é mais difícil entrar nos quintais, já que vivemos dentro de jaulas (todas as casas tem altas grades com cerca elétrica no alto).
Aqui também não se contentam com furtar frutas. Aqui entram nas casas, muitas vezes com os moradores dentro, e praticam o assalto. E nessas ocasiões, sempre a mão armada.
Nossa polícia é insuficiente, mal preparada e mal aparelhada.
Nossos problemas se iniciam com o exôdo das zonais rurais para as cidades. A falta de emprego gera insatisfação e muitos apelam para o crime. Muitos outros deixam os piás (miúdos como vocês chamam) em casas sozinhos, brincando na rua, sem regras, muitas vezes sem ir a escola.
Seria quase uma guerra civil.
Então imagine a NOSSA insegurança ao andar com bicicletas que muitas vezes custam um ano de salário ou mais dessas pessoas.
Abraço.
Olá Marcelo,
As coisas estão a piorar em muitos sentidos e em muitos locais, mas penso que ainda estamos longe de atingir o estado de sítio que parece ser a América Latina (mesmo com o devido cuidado com as generalizações).
Quando a nossa casa foi assaltada, havia pessoas em casa. As portas estavam destrancadas. Um miúdo entrou e roubou o dinheiro que tínhamos em casa e mais nada. Não se cruzou com ninguém, não houve confrontos nem violência.
Depois desse episódio aumentámos um pouco a altura dos muros (eram baixinhos), pusémos um gradeamento e uma tiras de arame farpado no topo. Mas não é ainda uma fortaleza. Acho que só não fomos assaltados novamente desde essa vez porque o miúdo viu que a nossa casa é muito simples e que não temos cá nada de valor, apesar do que o tamanho e o aspecto exterior da casa possa, talvez, indiciar. Word got out, I guess. 😉
Também já fui assaltada na rua, por dois miúdos. Andei a arrastar no chão agarrada à mala. Fiquei com uns arranhões mas mais nada. Não disseram nada, nem me agrediram. Não fiquei traumatizada, nem passei a ser racista (nos nossos incidentes têm sido sempre miúdos pretos), mas deixei de facilitar.
Aqui estes bairros problemáticos não estão associados ao êxodo rural. Isso aconteceu mais em gerações anteriores à minha, e não tenho ideia que fossem a origem de maior criminalidade urbana. Estes bairros sociais alojam maioritariamente imigrantes africanos e seus descendentes. Estes miúdos que causam problemas são portugueses. Nasceram cá, sempre viveram em Portugal, a maioria nunca sequer visitou o país de origem dos ascendentes.
Nem toda a gente que mora nestes bairros é criminosa ou marginal, a maioria trabalha, e no duro. Mas muitos dos miúdos crescem sem regras, sem estrutura familiar, passam o tempo na rua, sem ocupação útil. Acabam por fazer porcaria. A psicologia dos grupos e os anos da adolescência propiciam a que se façam asneiras…
A nossa polícia tem falta de meios, também. Mas antes de mais, penso que o noso problema são as leis. Não serve de nada fazer queixas porque não leva a lado nenhum e as pessoas têm medo de retaliações. Não serve de nada prendê-los porque amanhã estão cá fora de novo.
Acho que é do próprio interesse do resto da sociedade investir financeira e socialmente na prevenção destas situações e na sua resolução. A vontade é exigir medidas mais drásticas e penas mais duras, o que até faz sentido, mas não pode ser dissociado do ataque às raízes dos problemas.
Mas muitas vezes pergunto-me o que raio se deve fazer para sociabilizar estes jovens, integrá-los como cidadãos. Em termos de infrastruturas, estes bairros sociais têm melhores condições do que as da localidade onde foram implantados. Melhores espaços públicos, as estradas são alcatroadas mais cedo, os transportes públicos começam a passar lá mais cedo. Os miúdos têm centros comunitários, creches e escolas no bairro ou perto dele… Até recintos desportivos aparecem lá mais depressa… Por um lado parece injusto para o resto das pessoas, por outro prefiro que se invista assim, do que gastar o mesmo dinheiro ou mais em damage control.
Será que alguma vez conseguirimos atingir uma sociedade que funcione, regra geral, em harmonia?…