O referendo ao direito à opção de abortar uma gravidez incipiente

Holy fucking shit!

Esta mulher é doida!

Violação? Temos pena. Se continuar a gravidez vai morrer ou ter graves problemas de saúde? É a vida. Não tem trabalho, já tem 6 filhos e não tem o que comer? Onde não comem 6 não comem 7. Gravidez ectópica? Azar o seu. Tem uma doença hereditária grave que não quer passar a um filho seu? Paciência, aguentem-se. Morreu-lhe um filho recentemente e não é capaz de ter outro agora? Não seja lamechas! Fetus in fetus? Esqueça! (A não ser que seja num homem, claro.) É uma criança de 10 anos que foi violada/abusada? Temos pena. Os 99 % de eficácia da pílula não foram suficientes? Azar, tivesse pensado nisso antes, quem a mandou fazer sexo?

Eu acho que só se deve praticar sexo quando se está preparado para lidar com as suas consequências (pelo que não acho aconselhável miúdos com menos de 15/16 anos se iniciarem tão cedo, até por razões de saúde). Consequências emocionais, de saúde (DSTs, “cistites de lua-de-mel” e todos esses percalços de iniciantes), gravidezes, implicações no futuro profissional e pessoal… Isso não quer dizer que, se uma mulher engravidar porque teve sexo consentâneo e o método contraceptivo falhou (ou mesmo que o casal tenha sido pouco cuidadoso com o mesmo) tenha que prosseguir com uma gravidez indesejada e indesejável “para aprender”, porque “devia ter pensado nisso antes”, porque “ninguém a mandou fazer sexo”. As pessoas devem ser responsabilizadas pelos seus actos, mas punir alguém com a obrigação de levar a termo uma gravidez e gerar um filho é aviltante.

Esta mulher obviamente terá uma perspectiva completamente alienada do sexo, da liberdade, e da maternidade e paternidade. Os seres humanos não fazem sexo para procriar. Fazem-no porque é bom. Faz-nos sentir fisicamente bem. E além disso tem um imenso poder de estabelecer laços de cumplicidade, intimidade e proximidade entre um casal. Oxitocina, anyone? Claro que é um truque biológico para nos levar a querer ou pelo menos não nos importarmos tanto com fazer sexo, e estar naquelas posições ridículas, e sujeitarmo-nos a doenças, lesões, etc, e assim poder perpetuar a espécie com maior sucesso (reprodução sexuada aumenta a diversidade genética, logo a capacidade de adaptação e sobrevivência de uma espécie). Os católicos hoje em dia nem deviam fazer sexo. Se ele só deve ser praticado com fins reprodutivos, para uma vida mais “santa” deviam todos fazer inseminação artificial, qual Virgem Maria. A ciência ao serviço da castidade. 😛

Não consigo perceber as pessoas que defendem o Não neste referendo e que depois vêm dizer que as mulheres não deviam ir prá prisão. Mas que lei hipócrita seria essa? Se é crime, deve haver pena, não? Pior, se estas pessoas pensam mesmo que abortar uma gravidez no início é matar uma pessoa, como é que podem não defender uma pena similar à dos outros homicídios?! 25 anos. E uma pessoa que aborta espontaneamente? Já li e vi/ouvi sobre diversos estudos que indicam que há muitas gravidezes que se iniciam mas são abortadas muito precocemente sem a mulher sequer se aperceber que esteve grávida. De alguma forma o corpo feminino identifica e elimina fecundações inviáveis. Não serão então os abortos espontâneos mas involuntários homicídios por negligência ou homicídios involuntários? Prós defensores do Não talvez sejam. Também devia dar pena de prisão.

Sou contra o aborto.
Toda a gente é. Sou pela vida. Toda a gente é. Mas acima de tudo sou pela liberdade de cada um ser pelo que quiser e viver a sua vida como entende e sente melhor. Até uma criança nascer ela e a mãe são a mesma pessoa. Ela é tão “vida” como qualquer órgão ou célula da mãe. Só existe porque faz parte de algo maior. Só quando o processo de gerar uma nova pessoa tiver terminado é que a criança nascerá, com uma capacidade de vida auto-sustentada. Só depois de nascer passa a ser uma pessoa (e uma “vida”) individualizada e independente da mãe. Ser independente da mãe é totalmente diferente de ser independente per se. A partir do nascimento ela pode ser cuidada por qualquer outra pessoa a tal disposta. É óbvio que só posso ser contra um aborto aos 6 meses ou depois. Já é possível um feto viável a partir das 24-26 semanas. Com sequelas, mas já tem alguma hipótese. Agora dizer que uma pessoa já era pessoa quando era uma conjunto de 2, 4, 16 células e que por isso não se pode abortar essa gravidez porque se está a matar essa pessoa… Epá, tenham dó. Daqui a pouco está tudo como aquela mulher no telejornal da RTP à hora de almoço há dias que disse que todos os óvulos e espermatozóides devem ter o direito de seguir a sua caminhada para a vida. Já não me lembro as palavras que ela usou mas foi algo que implicaria que a cada menstruação a mulher estaria a matar alguém, e que o homem idem idem aquando de cada ejaculação…

Alguém defender o Não-direito a optar por um aborto quando já há um coração a bater é apelar ao sentimentalismo ignorante das pessoas, que associam a emoção ao coração. Eu posso viver sem coração, com uma máquina a fazer o trabalho dele, e continuo a ser humana. O meu coração pode estar a trabalhar e eu ser declarada morta. Há pessoas a viver sem membros e sem alguns órgãos, só não há ninguém a viver sem cérebro funcional (embora apareçam na TV e na imprensa alguns casos que merecem uma investigação).

Quando oiço na rádio aqueles spots da campanha, pessoal a queixar-se e a indignar-se com a possibilidade de uma mulher poder fazer um aborto sem motivo, razão, ou qualquer justificação, dá-me vómitos. Nenhuma mulher fará um aborto “sem motivos”, “sem razões”, “sem justificação”. Ela lá as terá, podem é não agradar a terceiros. Mas estes não têm nada com isso! O que lixa esta gente é que as mulheres possam tomar decisões relacionadas com a sua reprodução sem o aval de médicos ou juízes. Já não bastava a revolução sexual e a pílula agora mais isto! Sabe-se lá, qualquer dia as mulheres até passam a ser seres humanos de pleno direito e reconhecimento!…

Obrigar a mulher a seguir com uma gravidez com o argumento de que no fim ela pode dar a criança para adopção também não é legítimo. Uma gravidez não é um processo fácil nem isento de risco e complicações, e o parto não é “a walk in the park”. Além disso não posso concordar que obrigar alguém a levar a termo uma gravidez indesejada, passar pelo parto, e depois abandonar um filho seu sabe-se lá aos cuidados de quem, seja menos imoral do que permitir um aborto, que é o que os do Não defendem. Como é que alguém abandona um filho?! Como é que alguém gera um filho que sabe que vai ter que abandonar? Ou que se o gerar não vai ser capaz de o abandonar e vai ter que se sujeitar às implicações dessa decisão? Como é que alguém abandona um filho no sistema de adopções e cuidado de crianças do nosso país?!

Uma criança com deficiência tem tanta dignidade e direitos como outra “normal”. Isso não implica que se pudermos evitar que alguém nasça com uma deficiência significativa conhecida à partida, não o devamos fazer. Abortar uma gravidez devido a uma deficiência não é o mesmo que dizer que alguém que existe hoje e nasceu com essa mesma deficiência não tenha direito à vida ou que não seja tão válido como “the next guy”. Parece haver muita gente que não percebe isto e traz míudos deficientes prá TV a dizer obrigado às mães por os terem tido. Duh! Não é como se eles andassem por ali noutra dimensão e de repente achassem uma mãe para os “ter”. Ela não os teve, ela fê-los. Se não os tivesse feito não havia ninguém para se sentir mal por isso, duh!

Acho que não concordo com a possibilidade de o Estado pagar integralmente o custo de um aborto legal que não seja por motivos de saúde, violação ou deficiência grave do feto. Mas o argumento do “pagar abortos com os impostos de todos” e “desviar dinheiro de outras coisas para pagar abortos” é imbecil. Ninguém anda a espalhar cartazes contra o financiamento de tratamentos a diabéticos que não têm cuidado com a sua saúde, ou a estropiados vítimas da sua própria irresponsabilidade com a bebida e/ou com o automóvel, ou a seropositivos que abusaram da sorte, ou a doentes de cancro causado pelo fumo do tabaco que alegremente foram consumindo (e obrigando outros a fazê-lo também), ou a doentes de cancro da pele que sempre curtiram torrar ao sol, etc, etc.

Depois há os que dizem que o Estado vai facilitar os abortos quando nós temos falta de natalidade e precisamos é de mais crianças. São duas coisas e dois problemas sem relação. Ou a solução para a falta de crianças desejadas é obrigar as indesejadas a existirem? Então as mulheres são simplesmente fábricas parideiras. Baixa demográfica, tudo a deitar cá pra fora putos, desejados ou não, convenientes ou não, sustentáveis ou não. O que interessa é renovar a população, mesmo que isso implique uma população mais pobre, menos instruída, mais frustrada e com menos perspectivas de emprego, carreira, futuro, vida. Claro que o Estado deve trabalhar para que a natalidade aumente. Para isso o país tem que melhorar: a economia, a educação, a saúde, o emprego, a assistência à família e os direitos laborais para a conciliar com o trabalho. Não é no meio do desespero social ainda obrigar a literalmente gerar mais problemas.

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Este é outro excelente outdoor do Não. “Nenhuma vida é demais”. Sentido figurado: mentira. Se calhar o Hitler era dispensável. Pronto, ok, isso poderia implicar uma História ainda pior. Mas o Ted Bundy, por exemplo, não afecta muito a História mundial mas para as suas vítimas seria altamente dispensável. Sentido literal: há muitos locais e muitas situações em que qualquer “vida” é demais. Em zonas arrasadas pela fome, por exemplo.

Há muita gente que aborda a questão do direito a optar por um aborto pela óptica do “o que é que isto vai resolver”. A resolução do problema tem que ser tentada, mas tal é independente do que está aqui em causa: o direito da mulher a decidir sobre o seu corpo e sobre a sua reprodução. Mesmo que só houvesse 1 única mulher a precisar ou a simplesmente querer abortar uma gravidez incipiente, essa mulher não deveria poder ser punida por isso. Todas as medidas sociais e económicas que puderem ser tomadas com vista a diminuir o número de gravidezes indesejadas, aumentar a taxa de aceitação e sustentação dessas gravidezes indesejadas de modo a diminuir o número de abortos, e aumentar o número de gravidezes e crianças desejadas, de modo a aumentar a natalidade e a felicidade das famílias, são bem-vindas e aplaudidas. Mas os direitos fundamentais não devem ser legislados consoante as suas consequências sociais ou económicas. Esse pessoal do Não que regra geral também é contra o direito a uma pessoa morrer quando o entender, não iria concerteza basear uma defesa da eutanásia e do suicídio assistido num excesso de idosos e doentes face ao tamanho da população… Então porque o faz no caso oposto: “há poucas crianças por isso vamos obrigar estas pessoas a gerarem filhos”?

É muito fácil obrigar os outros a terem filhos em condições indesejáveis. Mas quando são eles, as mulheres, as filhas, ou as irmãs, há sempre Espanha ou alguma clínica jeitosa em Lisboa. E assim podem continuar a ser gente “decente” pelo Não e “pela vida” e a ir à Missa e estar de bem com o clero. Pertencer a clubes poderosos dá sempre jeito.

Sou pela vida. Pela vida que eu quero viver, como e quando a quero viver. Nenhuma mulher devia poder ser obrigada a sujeitar-se a exames ginecológicos forçados nem a devassas da sua vida íntima, afectiva e sexual, com exposição e julgamento públicos das suas opções individuais que a mais ninguém dizem respeito. No dia 11 de Fevereiro de 2007 vou votar SIM.

As mulheres fazem os filhos sozinhas, sim. Levam mais ou menos 9 meses. Os homens estão envolvidos durante alguns minutos no início. Sem eles não havia filhos, mas o papel principal é, para o melhor e para o pior, das mulheres. Como tal, se levadas a abortar contrariamente aos seus desejos o homem deverá ser chamado ao caso. E se a mulher não quiser abortar uma gravidez indesejada pelo parceiro, após o nascmento da criança ele vai ter que acartar com as implicações da paternidade, tal como a mulher as da maternidade. Mas se o homem desejar um filho mas a mulher não? Por mais injusto que isso possa ser para o homem, a mulher tem que ter a última palavra, porque ela é que faz o filho. O homem poder impôr à mulher o prosseguimento da gravidez seria ainda mais injusto. Life’s a bitch. Biology can be a bitch too, sometimes.

No próximo domingo, vota no referendo! A abstenção só diz “eu estou-me lixando para mim próprio e para os outros”…

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