O lugar das bicicletas é um tema com discussão acesa entre os vários campos de opinião: no passeio, em ciclovias, na estrada, em casa, etc. Eu acho que esta discussão devia ocorrer no âmbito de algo mais abrangente sobre a qualidade e utilização global do espaço público.
Relativamente ao espaço das bicicletas e conhecendo algumas realidades por descrição e relato, outras por experiência própria de utilização diária, outras por experiência de utilização de alguns dias, considero que esta não será uma discussão com fim se tratada independentemente das que cubram os outros utilizadores da via.
Não o é porque existe a tentativa de perante vários factores ter uma perspectiva generalista da questão, pegando em exemplos de outros paradigmas não aplicáveis às nossas realidades em discussão, ou mesmo ao senso comum. Associando a isso uma atitude inflexível habitual nas discussões com participantes entusiastas, acaba a discussão por ser pouco construtiva para solucionar o problema. Quem decide não é conhecedor suficiente para ver a imagem toda e perante uma discussão sem conclusão fará aquilo que para si tenha mais sentido, ou que acabe sendo mais simples e/ou barato.
Para saber qual será o melhor sítio para circular de bicicleta é fundamental analisar as infraestruturas, a sua condição, os seus utilizadores, o papel do utilizador da bicicleta na interacção com esses e não desprezar o factor cultural e o contexto social da bicicleta. Isto será fundamental para perceber porque noutros países a bicicleta tem determinado tipo de infraestruturas e os seus utilizadores direitos, sobre onde e como devem e podem circular. Daí que transpor cegamente certas ideias que funcionam aparentemente bem em certos países para a nossa realidade não funcionará.
Digo aparentemente porque não basta o que vemos e experimentamos, temos que saber o que pensam e sentem as pessoas naquela realidade e como funciona a dinâmica da bicicleta com os outros utilizadores da via.
Num local onde a bicicleta faz parte da cultura e é usada por uma grande parte da população, vemos a existência de infraestruturas antigas e a criação de novas infraestruturas próprias para circular de bicicleta, sejam estas marcações na estrada, divisões no passeio, ou mesmo regras de prioridade sobre os outros utilizadores da via, e maior parte destas foram definidas ou aquando da criação das vias (dividindo o espaços devidamente), ou então as vias foram criadas com espaço disposto de forma a contemplar as alterações posteriormente (passeios largos onde foram definidas posteriormente zonas de bicicleta, por exemplo). O fundamental na maioria dos casos é que existe uma abrangência e coerência das infraestruturas que lhes dá um sentido, independentemente do sucesso global dessas soluções.
Refiro o sucesso global porque me parece ser comum verificar que em alguns destes casos o peão acaba por ficar prejudicado e limitado na utilização da porção de via dedicada a si e na interacção com os outros utilizadores da via, e nisso o nosso modelo actual já é bem sucedido.
Num local como o nosso onde a bicicleta não tem peso cultural, ou tem-no ganhado lentamente em várias frentes (desporto, lazer, transporte), não podemos exigir que se transformem os locais que não foram criados a pensar na bicicleta prejudicando o peão, quando em muitos casos as infraestruturas nem a pensar nele foram criadas. Cá as vias não contemplam sequer espaço adequado para os peões, e a interligação das vias destinadas a peões é por definição deficiente, não é possível obter um bom resultado para os utilizadores de bicicleta e peões se os primeiros tirarem espaço aos segundos, acabando com vias retalhadas, que em vez de supostamente aumentar a segurança dos utilizadores de bicicleta a reduz, criando situações de conflito com os peões e com os cruzamentos com as estradas.
Diria ser pouco sensato que, perante a criação de auto-estradas urbanas e muralhas rodoviárias que têm vindo a prejudicar as pessoas que vivem e trabalham nesses locais (pelos vários tipos de poluição criados) e aquelas que têm que se deslocar nesses locais a pé, se venha defender que se deva criar à custa dos peões, locais para circular de bicicleta.
Acho que devemos olhar criticamente para as decisões de planeamento rodoviário e verificar que é absurdo ter estradas de 3 faixas com condições e estrutura de auto-estrada em locais onde a velocidade máxima permitida é de 30 a 50km/h, e onde acaba por se circular ao dobro ou mais destas velocidades.
Talvez devêssemos começar por acabar com a mania de plantar sinais com os limites de velocidade (que ninguém consegue cumprir) onde são necessárias radicais alterações das vias, apesar de baratos e mais simples, não têm outro efeito, senão entupir as já problemáticas vias pedonais.
As vias têm que ditar a velocidade, não os sinais. O excesso de velocidade é ditado pela via, haja sinais ou radares, se a via permite determinada velocidade e os indicadores visuais de velocidade não existem (obstáculos, árvores, casas, etc), a relatividade da velocidade perde-se e os condutores de veículos motorizados que efectuam o mesmo esforço para ir a 40km/h que para ir a 80km/h, dada a qualidade crescente dos carros actuais (potência e insonorização), não têm noção da forma agressiva como afectam os outros utilizadores da via.
Associado a isto deve existir um forte investimento em devolver às pessoas o espaço que lhes é devido, e isso passa por reformular muitas estradas e estacionamento em passeio, e tornar as estradas adequadas à velocidade que nela se deve praticar e isto transforma uma estrada que podia ser complicada para um utilizador de bicicleta, numa estrada em que este pode circular a uma velocidade compatível com aquela que os condutores de veículos motorizados podem praticar e onde outras pessoas se possam deslocar mais confortavelmente a pé.
Acho que não se pode dissociar as campanhas pró-bicicleta do investimento na qualidade das vias para os peões, nem de abrangentes campanhas de educação dos deveres e direitos dos vários utilizadores da via, já que a maioria dos confrontos entre peões, utilizadores de bicicleta e condutores de veículos motorizados se dá pela ignorância de alguma das partes face aos deveres e direitos da outra parte.
Isto leva-nos obviamente à premente necessidade de rever o Código da Estrada, diria mesmo mudar-lhe o nome para algo como Código de Circulação em Espaço Público, e respeitando a nossa constituição e o senso comum, atribuir-lhe o dever de proteger os utilizadores da via pela ordem correcta, o que não acontece com o actual CE. Isto traria este manual para uma posição adequada perante a sociedade, passando a fazer parte mais integrante da aprendizagem nas escolas.
Num panorama de indefinição, com muitas opiniões entusiastas, encontrar soluções é difícil, quiçá, impossível.
Acho que devemos aderir àquilo que está definido (e fazer lobby para melhorar essas definições), adequar a nossa utilização às regras que existem e às condições das infraestruturas, respeitando os outros utilizadores do espaço público, mas impondo assertivamente os nossos direitos.
Usar a estrada é uma negociação e como em qualquer negociação, nalgumas teremos sucesso, outras correrão menos bem, e haverá sempre alguém com quem é impossível negociar. Resta-nos nestes casos esperar que estas pessoas de alguma forma ganhem esta competência no futuro, e ai entram a adequação das vias às regras e campanhas de educação.