“O carro roubou-me a rua”

Esta peça emitida hoje no Jornal da Noite da SIC (aos 17min25s) é surpreendente. A começar pelo título. Não é todos os dias (nem todas as semanas ou sequer todos os meses…) que se ouve alguém a ousar criticar o papel do automóvel em Portugal.

Contudo, achei isto um bocado “morrer na praia”.

Para ilustrar este roubo da rua pelo carro, resolveram “mostrar-nos Lisboa através de duas perspectivas diferentes, a de um incondicional adepto da bicicleta, e a de uma adepta do automóvel”.

  • homem, 34 anos, vive sozinho e sem filhos a 4 Km/12 minutos do local de trabalho, no centro de Lisboa, vai de bicicleta, nunca teve carro e usa um esporadicamente (tipo 1 vez por mês), quando se justifica
  • mulher, 39 anos, com um filho, vive noutro concelho, do outro lado do rio, no Montijo, a ~45 minutos de carro / 90 minutos de transportes públicos, e “sempre teve carro”

O que é suposto tirar daqui, no fundo? Deste contraponto de ciclista urbano de 4 Km vs. automobilista inter-urbano de 40 Km?

Quantas pessoas vivem a 4 Km do emprego e vão de carro (e não de bicicleta, como o Miguel)? Não seria interessante mostrar um caso desses? Estou certa de que seria super-fácil encontrar carradas de exemplos… A nível europeu diz que 50 % das deslocações de carro na Europa são em distâncias de menos de 5 Km.

Quantas pessoas vivem a 30-40 Km ou mais do emprego e não vão de carro (ao contrário da Marta)? Não seria interessante mostrar um caso desses? Eu até conheço dois, um commute bicleta + autocarro Expresso entre Torres Vedras e Lisboa, e outro de bicicleta+comboio entre Alverca e Paço de Arcos.

Se a jornalista se lembrou de perguntar ao Miguel “nunca sentiu necessidade de ter um carro”, por que não lhe ocorreu perguntar à Marta se já ponderou não ter um carro (os táxis e os carros emprestados e as boleias de amigos ou vizinhos, etc, existem para as “urgências” que ela refere) ou tê-lo mas usá-lo menos?

Se a jornalista ouviu sem questionar a justificação do uso do carro pela Marta “para poder fazer as compras a caminho de casa”, e depois confrontou o Miguel com essa suposta dificuldade logística para um ciclista, por que não perguntar à Marta, que tem uma profissão sedentária (arquitecta) como é que ela faz para incorporar alguma actividade física mínima que seja no seu quotidiano?

Realmente interessante teria sido mostrarem 4 casos, urbano vs. inter-urbano e carro vs. não-carro. Mas enfim, de qualquer modo foi uma boa peça, com boas intervenções.

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O elefante na sala

Esta peça jornalística de um canal de televisão australiano mostra bem o problema grave que enfrentamos ao tentar melhorar as nossas cidades:

É muito fácil atacar e censurar a minoria. Dava muito mais trabalho e dores de cabeça mostrarem-se chocados pelo excesso de veículos automóveis no centro das cidades ou pelo excesso de velocidade destes, que são a origem deste “grande perigo” a que esta gente acha que esta dupla ciclista mãe & filha se está a expôr de forma “irresponsável”.

Curioso que, para eles, a irresponsabilidade não é de quem põe os outros em perigo ou das autoridades que permitem que tal aconteça, mas de quem, por uma razão ou por outra, se expõe de forma mais vulnerável ao perigo causado pelas acções dos outros.

Inenarrável é ainda aquela cena imbecil do teste de colisão do atrelado e comentários associados. Uma colisão a 60 Km/hora naquelas ruas? Really?  Então devem achar os peões outros irresponsáveis…  Qualquer pessoa que ande na rua sem uma carapaça de metal, exposta a veículos desgovernados está a arriscar a vida de uma forma inaceitável ao ponto de dever ser ilegalizada….

A escolha dos comentadores, que não incluiu ninguém que efectivamente compreenda o que é andar de bicicleta na cidade, ou as questões de segurança rodoviária relevantes para o caso, é chocante.

Para algo tão tremendamente perigoso, não deixa de ser no mínimo intrigante que esta mulher o faça há 5 anos sem problemas a assinalar… Confundem perigo com risco.

Esta mentalidade é a mesma de quem acha que a culpa de uma mulher ser violada é dela própria. Para esta gente, esta mulher que opta por um meio de transporte saudável e sustentável num meio urbano, dando um bom exemplo aos seus pares e à sua filha, está a “pedi-las”.

Não é estranho que isto seja num país onde implementaram a obrigatoriedade do uso do capacete. Agora estão todos muito melhores, não morrem poucos de acidentes de bicicleta, morrem muitos de doenças associadas ao sedentarismo e à obesidade e em acidentes de automóvel.

*sigh*

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E tu, estás a ser conivente?

Como se pode ser conivente com isto?!…

É preciso reduzir o lixo que produzimos, torná-lo reutilizável/reciclável/compostável, e impedi-lo de ser libertado na Natureza.

Os vizinhos/amigos/familiares/etc que nem separam o lixo merecem um olhar desaprovador e uns comentários construtivos. Deitar lixo na rua/natureza, e não separar o lixo NÃO É SOCIALMENTE ACEITÁVEL.

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Tempo é dinheiro

Aqui há tempos vi este filme, “In time“:

A expressão “tempo é dinheiro” ganha aqui outra percepção. Tempo é dinheiro, e dinheiro é tempo.

Neste filme ficar sem dinheiro é ficar sem tempo é morrer. É um pouco mais súbito do que na vida real, mas é muito próximo. Presumo que deva ser esta a experiência quotidiana da maior parte das pessoas no mundo: todos os dias trabalham para tentar ter dinheiro (= comida, roupa, assistência médica) para viver mais um dia. E quem sabe, se tiverem sorte, um extra mais para 1) melhorarem a sua experiência da vida (lazer, conforto, segurança) e/ou 2) melhorarem as suas hipóteses de amanhã conseguirem fazer mais dinheiro (investindo em educação, por exemplo), passando a conseguir viver uma semana, um mês, etc, de cada vez, e não um dia de cada vez… Depois haverão muitas que todos os dias receberão mais ‘tempo’ do que aquele que podem gastar.

Este filme retrata bem a nossa sociedade, a forma como os pobres são eternamente mantidos pobres pelos ricos que dominam o sistema e que vão ficando cada vez mais ricos, à custa do que os pobres produzem e consomem (pensem, a Inditex é o que é graças a quem compra roupa barata, a McDonalds é o que é graças a quem compra comida barata). A classe média, principalmente a remediada, é o enabler do sistema que a oprime.

Isto liga com esta talk que a TED censurou.

In a capitalist economy, the true job creators are consumers, the middle class. And taxing the rich to make investments that grow the middle class, is the single smartest thing we can do for the middle class, the poor and the rich.

Claro que, se a classe média e os pobres são esmagados, ninguém consome, logo ninguém contrata, e todos despedem se puderem, ou fecham, mais tarde ou mais cedo. E como a classe média e baixa são os que pagam mais (e mais) impostos, também a receita fiscal do Estado se reduz e, logo, as poucas redes de segurança, dignidade e justiça são enfraquecidas ou eliminadas (SNS, educação, justiça, SS)…

Daqui se deduz que decidir o que comprar e onde comprar são das decisões políticas quotidianas de cada um mais importantes. Eu vou fortalecer e fazer crescer aquilo de que aumento a procura, e vou enfraquecer e matar aquilo que não procuro. Isto é válido em transacções pessoais,  locais, nacionais ou internacionais, determinando o futuro dos profissionais, dos pequenos negócios de bairro, passando pelas empresas locais e nacionais, até aos países.

O problema é que quando não se tem dinheiro não se tem muita escolha, e passa a contar apenas o preço. E quando se decide baseado no preço e não no valor, mais tarde ou mais cedo acabamos reféns de alguma grande corporação e/ou de um país.

Sinceramente estou farta da crise. Do medo, da incerteza, do desespero, da depressão, da ausência de esperança, da pressão esmagadora de tentar sobreviver ao ritmo de um dia de cada vez, esperando pelo menos não adoecer nem ter um acidente, que despoletariam a queda no precipício. Os que têm pouco dinheiro costumam ter mais tempo, e os que têm muito dinheiro costumam ter pouco tempo (mas ao menos têm dinheiro para o gozarem à vontade). E depois há os outros desgraçados que nem dinheiro nem tempo.

Eu, que sempre me considerei consideravelmente avessa ao risco (risco físico, risco emocional, risco financeiro), vejo-me a ter de o gerir e internalizar diariamente, e às vezes a sonhar acordada, “que bom seria ser como os outros, ter um emprego, um salário fixo com que posso contar, alguém a dizer-me o que fazer, como e quando, horas para entrar e para sair, dias de folga, férias, alguma segurança, um pouco menos de stress”. Depois leio ou oiço mais umas histórias, e penso, mas qual segurança? Nada é garantido. Os nossos direitos, quando os temos, não são absolutos nem intocáveis, são-nos reconhecidos e atribuídos por outros, que podem mudar de ideias. E quando não se tem dinheiro e não se tem tempo, ficamos socialmente excluídos, e não nos envolvemos politicamente, não exercemos os nossos direitos e deveres de cidadania, o que só leva a que acabemos governados por gente sem valores e sem valor, e com um preço. Como sair deste ciclo?…

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Para que serve a utopia

Se não nos deixarem sonhar, nos os deixaremos dormir.

A utopia está no horizonte, e eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu caminho 10 passos, ela se afastará 10 passos, quanto mais a procure menos a encontrarei, porque ela se vai afastando à medida que eu me aproximo. Boa pergunta, não? Para que serve? Pois, a utopia serve para isso, para caminhar.

Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano

Via

O que mais me dói neste contexto de crise é que enche as pessoas de medo, e quem tem medo não sonha, quem tem medo não realiza sonhos. O medo paralisa-nos, deixamos de tentar alcançar a utopia, e deixamos de caminhar.

A realidade de hoje foi a utopia de ontem. A utopia é simplesmente um lugar aonde ainda não chegámos. Continuemos a caminhar!

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